sexta-feira, 30 de maio de 2008

"O Tempo do Mundo às avessas" por João César das Neves

- Dona Fernanda, então por aqui? Agora me lembro, ainda não lhe dei osparabéns pelo seu homem. Vi-o no concurso da televisão. Que honra! Muitosparabéns! Fiquei orgulhosa como se fosse meu!

- É verdade, dona Cátia. Estamos muito contentes. Foi muito bom, até paracompensar a desgraça da minha irmã. Não sabe? Imagine que o marido dela éadministrador de um banco.

- Não me diga! Que vergonha! Mas qual? Daquele criminoso, o BCP?

- Olhe nem sei bem. Mas aquilo é tudo a mesma gente. Coitada da minha irmã,anda muito ralada! Felizmente que o amante está muito bem. Era segurança numbar, mas agora conseguiu ficar dado como deficiente por causa de uma sova quelevou e o subsídio é excelente.

- Ainda bem! Que sorte! Olhe, essa sorte não tenho eu. Ando muito preocupadacom o meu sobrinho. Não, não é com o homossexual. Não, esse está óptimo. Foiao estrangeiro casar com o amigo e agora até estão a pensar adoptar umacriança por lá. O que me preocupa é o outro, o Zé. Tem um restaurante,imagine. Um restaurante de luxo.

- Ai, coitado! Em que se havia de meter! E tem tido muitas queixas?

- Pois. Calcule que nem sequer usava sabão líquido nas casas de banho e osexaustores são de baixa extracção. Estou com medo que mais cedo ou mais tardeacabe na cadeia, pobrezinho!

- Compreendo, compreendo. As ralações que temos! E então o que é que a trazpor cá? Eu vou agora ali à direcção da escola queixar-me. Veja lá que a minhafilha me disse que lá na escola não há máquinas de distribuição depreservativos na casa de banho das raparigas. Só na dos rapazes. Não é umavergonha?

- Um escândalo. Depois se há problemas a culpa é dos pequenos! Eu também tenhode lá ir mas, infelizmente, é derivado ao comportamento do meu Ronaldinho.

- Não me diga que ainda é por causa da gravidez?

- Não, que ideia. Isso está tudo resolvido. Eles os dois trataram a questãocom muito bom senso. Nem pareciam ter 13 anos! O aborto correu muito bem e omeu rapaz até já arranjou outra namorada bastante mais velha. Não, o que mepreocupa é aquele grupo com que ele anda.

- Qual? A banda de rock satânico? Oh, minha amiga não se apoquente com isso.Nós lá em casa até dissemos ao nosso rapaz para criar uma. Antes isso queandar pelos ATL da paróquia com aqueles beatos a meter patranhas na cabeçasdos miúdos. Na banda é muito mais seguro e saudável. Não só é artístico, comoabre horizontes e um dia, quem sabe... Olhe, não me preocuparia nada com isso.

- Não, não é isso. Nós também estamos muito satisfeitos por ele andar com abanda. É um excelente meio de educação. Ao princípio ainda me chocavam umbocado as letras das canções, a falar de suicídio e sangue, mas agora até achograça. Rapazes são rapazes, não é? Não, é muito pior. Ele também anda metidoem coisas mesmo graves com aquele outro grupo clandestino. Já ouviu falar,não? Aquele grupo de fumadores que no outro dia até apareceu no jornal por umdeles fumar dentro do metro.

- Que horror! O seu filho fuma? Mas isso faz imenso mal à saúde e polui oambiente. Então ele não pensa no aquecimento global? Esta juventude estáperdida!

- Eu sei, eu sei! Tentámos tudo para o afastar do vício, mas nada. O meumarido até quis ver se o interessava em /blogs /pornográficos, /chats/neonazis e outras coisas que fossem também um bocadinho subversivas eclandestinas mas não fizessem tanto mal. Mas nada! Ele não larga o cigarro! Aculpa é do meu homem e eu já lhe disse. Imagine que quando o miúdo era pequenolhe dava pistolas e outros brinquedos de violência. Claro que tinha de teresta consequência, não era?

- Que horror! Imagino como anda apoquentada. E nos estudos, que tal anda ele?Os meus antigamente era um castigo. Davam muitos erros de ortografia mas issoagora, com este novo programa para o insucesso escolar, deixou de criarproblemas porque já não conta. E, mesmo na Matemática, o que interessa é acriatividade dos miúdos. Se os professores explicam mal que culpa têm ospequenos?

- Eu digo o mesmo. Se eles depois acabam todos no desemprego, ao menos gozem ajuventude.

João César das Neves

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